quinta-feira, 3 de julho de 2008

Educação popular e a construção de um poder ético

Desde a década de vinte, mais especificamente após a semana de arte moderna[1] e posteriormente com os manifestos da escola nova[2], já se falava em uma educação popular que fosse direito de todos. Mais tarde, com o governo de Juscelino Kubitschek (1956 a 1961) e de João Goulart (1961 a 1964) e o advento da industrialização no Brasil com a chegada de capital estrangeiro, a limitação da educação tornou-se um problema e passou a ser necessário instruir o povo para expandir o capital. Nesse cenário, em 1959 educadores e intelectuais lançaram um manifesto em defesa da escola pública ao entender que o desenvolvimento econômico do país se passava necessariamente pela educação, muito mais técnica, para ensinar a fazer, do que clássica para formar intelectuais.

Nesse sentido, frente a um Estado autoritário, dominante e excludente, era preciso “dar as costas” e fazer surgir uma alternativa de mudança. Foi então que a partir de 1960 surge a educação popular, idealizada pelo educador Paulo Freire[3], com suas primeiras iniciativas de conscientização política do povo buscando a emancipação social, cultural e política das classes menos favorecidas. Assim, a EP se dirige às vítimas de desigualdades sociais e culturais.

Nos ideais de Paulo Freire, os princípios da educação popular estão relacionados à mudança da realidade opressora, o reconhecimento, a valorização e a emancipação dos diversos sujeitos individuais e coletivos. Contudo, além da conscientização, a prática e a reflexão sobre a prática formam a categoria de organização da educação popular e são elementos básicos para a transformação. Nesse sentido, a sociedade civil organizada foi identificada como instância de promoção e sistematização da educação popular (Paiva, 1986).

A metodologia usada por Freire era dialógica. Ele realizava “círculos de cultura”, onde a alfabetização fluía a partir da “leitura de mundo” dos envolvidos, se dava de dentro para fora, através do próprio trabalho. O método fora aplicado em várias cidades pelos diversos movimentos sociais existentes na época, alfabetizou 300 trabalhadores em 45 dias. Com o impressionante resultado, o Governo Federal, representado pelo então presidente João Goulart, adotou a idéia a nível nacional. De 1963 a início de 1964 foram concretizados vários cursos de formação de coordenadores em diversos estados brasileiros para efetivarem o plano de ação que tinha por meta alfabetizar 2 milhões de alunos. Com o golpe militar em março de 1964, a campanha nacional de alfabetização foi considerada “perigosamente subversiva”. Tudo foi condenado e Paulo Freire exilado (Brandão, 1993).

Durante o regime militar, Paulo Freire foi obrigado a trabalhar fora do Brasil onde escreveu vários livros[4] sobre educação, conscientização e liberdade. Com a anistia na década de 80, Freire retorna ao Brasil para, como ele mesmo disse, “aprender tudo de novo” e assume em 1989 a Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo, durante a administração petista de Luísa Erundina. Com esse trabalho, Freire pôde experimentar suas idéias, até então aplicadas na educação não-formal, num complexo educacional de escolas.

Vale salientar, entretanto, que na década de 1980 há uma mudança no padrão de acumulação do capital. A educação volta a ser valor indiscutível vestido de um discurso democratizador. Esse valor, da educação e do desenvolvimento, tinha se perdido na década anterior. Iniciava-se a luta por um tipo de democracia e de educação que atendesse os interesses das classes populares (Arroyo, 1986).

Mesmo com a atuação “às escondidas” dos movimentos sociais a partir de 1964 realizando as práticas de EP e mantendo vivas suas concepções pedagógicas, o novo cenário educacional brasileiro de 1980 configurava-se uma crise nos paradigmas da EP com relativa perda de força do discurso inicial da mesma, formando, ao longo da história, novos paradigmas. A revolução política, a queda do socialismo real e as mudanças ocorridas nesse período causam impactos na concepção de EP dos anos 80/90, deixando esta de ser a força maior para a revolução, de ser de classe para se tornar das classes sociais influenciadas pelas concepções gramscianas. Havia a necessidade de “ressignificar os papéis, os fins, os valores, os métodos, as dinâmicas e as relações entre sujeitos das práticas educativas” (Paludo, 2001, p. 154)

Assim, a criação da escola pública popular estava a um passo. Em São Paulo, Freire analisou a realidade e iniciou sua ação com um projeto de reforma político-pedagógica radical. Era preciso aumentar em quantidade, frente à situação real de descaso administrativo das escolas, aos salários baixos, a ausência de infra-estrutura e recursos materiais, mas também, e principalmente, era preciso melhorar em qualidade. Como em todo país, o sistema educacional passava (e passa ainda hoje) por crises institucionais e pedagógicas, de eficiência, de eficácia e de produtividade, ou seja, uma crise na qualidade.

Para reverter esse quadro em São Paulo, Freire propôs a democratização da gestão escolar com a integração escola-comunidade, a formação e profissionalização dos profissionais da educação (ele via todos os que fazem a escola como educadores) e uma reforma curricular. Freire objetivava a criação de uma escola democrática e cidadã, de comunidade e de companheirismo. Assim, os movimentos populares, a igreja e as universidades foram convidados e aceitaram aliar-se ao mutirão cívico-educativo para criar a escola pública popular.

Os princípios da EP escolar eram: produção do conhecimento pelo conceito geral de problematização; redefinição das áreas de conteúdos lançando mão da pedagogia de projetos e da interdisciplinaridade a partir de tema gerador; representação da compreensão e orientação do currículo escolar para tornar o conhecimento dinâmico e nunca encerrado; transformação das relações entre educadores e educandos na dialogicidade e na integração do conhecimento sistematizado e conhecimento popular; e a alteração do papel desempenhado, o indivíduo como autor de sua inclusão, ou seja, o protagonismo social é a atual meta da educação popular. Por essa concepção, o próprio excluído deve estar apto a buscar aquilo que lhe é de direito. Cabe ao educador popular despertar esse sentimento em sua comunidade.

Hoje, no entanto, nos parece que a EP continua em movimento de encaixe ou de encontro com outros espaços, principalmente os formais estatais. Segundo Carlos (2005, pp. 11/12), há “atualmente na América Latina, uma tendência de ampliação do campo semântico bem como dos espaços de efetivação da EP, mesmo no seio daquelas práticas educativas centradas na ideologia da defesa dos interesses das classes populares”. Assim, a luta assumida por educadores populares na atualidade é por uma educação pública de qualidade, democrática e cidadã. Como confirma Gadotti (2000), os educadores populares que permaneceram fiéis aos princípios da EP estão atuando principalmente na educação pública popular, no espaço conquistado no interior do Estado.

Mas, a necessidade de construir uma democracia integral e uma cidadania ativa perpassa por novas práticas de exercício do poder dentro de uma cultura político-democrática (Pontual, 1998). Os valores e a ética são essenciais para a formação dessa cultura política.

Nessa perspectiva, um dos grandes desafios para a educação popular é justamente a coerência entre o discurso e a prática como exigência ética num contexto de conseqüências perversas do neoliberalismo, tanto sociais, econômicas e políticas. Para isso é preciso humildade, tolerância e esperança.

Sobre esses aspectos, Freire também contribui significativamente. No seu livro “à sombra dessa mangueira”, ele assim se refere a nossa sociedade:

“(...) uma sociedade desafiada pela globalização da economia, pela fome, pela pobreza, pelo tradicionalismo, pela modernidade e até pós-modernidade, pelo autoritarismo, pela democracia, pela violência, pela impunidade, pelo cinismo, pela apatia, pela desesperança, mas também pela esperança”. (1995, p.59)

É nessa realidade descrita que se encontra a educação popular e o desafio de uma prática político-pedagógica dos educadores para a formação de uma cultura político-democrática e cidadã das classes populares. Nesse sentido, Freire (1995, p. 73) nos fala que “humildade e tolerância são fundamentais”. Humildade para aceitar que existem outras verdades e tolerância para aceitar e crescer na diferença.

Construir uma escola pública popular é ampliar as aspirações educacionais populares aliadas a reorientação política do nosso país, é adotar para a educação escolar um currículo pensado na população. É fazer uma escola que para Freire (1991, p. 43): “estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar, onde se propõe a construção do conhecimento coletivo, articulando o saber popular e o saber crítico, científico, mediado pelas experiências no mundo”.

Concordo com Souza (1997) quando ele afirma que a perspectiva para a educação popular é a do fortalecimento dos processos pedagógicos para aumentar sua contribuição na construção dos poderes locais e globais a fim de ampliar a força cultural, fundamentar o sentido mobilizador dos valores da justiça, da solidariedade e da igualdade. Assim, haverá a construção de um poder ético em meio a uma integração social sem exclusões.

É nesse contexto atual que algumas questões sobre política social, diferenças sociais e práticas nas escolas vêm à tona e nos convidam a novas reflexões. Uma delas, por exemplo, é levantada por Henry e Roger (1994): como lidar com a diversidade e as diferenças sociais em termos intelectuais, emocionais e práticos? Eis aqui outro grande desafio para a educação popular: formar a consciência de viver democraticamente em uma sociedade plural e fazer a pedagogia crítica, levando todos a uma discussão crítica, sem cair na desesperança ou na sensação de impotência. Ou ainda mais profundo: formar a consciência de viver democraticamente em uma sociedade impregnada de exclusões, levando todos, além da discussão crítica, a uma prática inclusiva.

A educação popular ao cruzar a fronteira da escolarização, busca o resgate da cidadania e a necessidade de inclusão em todos os sentidos.

Referências:

ARROYO, Miguel G. (Org.) Da escola carente à escola possível. São Paulo: Loyola, 1986. (Coleção Educação Popular).

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é o método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1981.

CARLOS, Erenildo João. Semânticas da educação popular. In.: http://www.anped.org.br/25/excedentes25/erenildojoaocarlost06.rtf [acesso 10/08/2006]

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho D’água, 1995.

GADOTTI, M. Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre, Ed. Artes Médicas, 2000.

GIROUX, Henry e SIMON, Roger. Cultura popular e pedagogia crítica: a vida cotidiana como base para o conhecimento curricular. In.: MOREIRA, Antonio F. e SILVA, Tomaz Tadeu (Org.) Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1994.

PAIVA, Vanilda. Perspectivas e dilemas da educação popular. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

PALUDO, Conceição. Educação popular em busca de alternativas: uma leitura desde o campo democrático e popular. Porto Alegre: Tomo Editorial, Camp, 2001.

PONTUAL, Pedro. A contribuição de Paulo Freire no debate sobre a refundamentação da educação popular. In,: Revista de Educação AEC. Ano 27, nº 106, Jan/Mar.

SOUZA, João Francisco. Que educação é direito de todos? In.: Revista de Educação AEC. Ano 26, nº 105. Out/Dez.

por RITA CRISTIANA BARBOSA

(http://www.espacoacademico.com.br/078/78barbosa.htm)


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